Paulo Bauler
Com este vinho, embriagando a tarde qual domingo
Ergo um brinde ao mundo, sonhado e prometido
Súbito vindo a mim lá de qual futuro
Algo assim como um mútuo de um Deus distante
Quase certo o mundo que celebro não será para vocês, sisters
and brothers
um mundo dos seus próprios sonhos pródigos.
Quiçá nem será mundo este tal mundo, mas
ao estalar da língua logo ao primeiro copo - dele, este meu
mundo
Alguma cidade, bairro, ou simples vila
Decerto será, my sister, my brother
Do vosso inteiro agrado
(se assim for não se acanhe, my dear
Que por lá havemos de lhe acomodar)
No passport, para este mundo, no visa
and tax free.
Nem armas nem barões assassinados,
Pas de politique, even democratic
Que em tal mundo cada qual goza o que pode
Sim, sisters and brothers, com este gole - tinto, seco e
carpinteiro
Encho meu tinteiro, de cores, de sons - inclusive o silêncio
I tell you the truth: esse tal mundo eu cá não invento
posto que já posto ao pensamento largo
por tantos quantos à sua ágora pertençam
Uma summa cosmológica, talvez, eu faço
(Não que seja de todo necessário)
Talvez os traços desses atlas mais apago
Desse tal mundo que em verdade nada invento
Posto que já posto ao modo estreito e vasto
Que a imaginação concede, a quem terráqueo
Deus deu asas de universo
O revólver de um lado, a garrafa
tombada e a larga mácula à toalha sudária
o sangue de um cristo e espinhos crucifixo dessas todas noites
E a cinza espalhada, e as pontas
fedidas de um cinzeiro virado, e tudo o mais
que faz o cenário latino dos desvarios, essa raça cheia de nervos
de orgulhos feridos, sensível, suscetível ao mais leve descaso
de Vênus
A cara no espelho acorda a cara que olha
e não condena a cara que o pensamento olha
compreendendo a cara que mora na alma
Nem de longe a cara que na rua olham
Quantas caras bastam
a se olhar na cara?
É mais uma formiga na multidão de uma terra ao sul do equador
e nada mudará a despiciência de cada qual.
Mas isto é o espelho; o verso é que se sabe estrangeiro
já que um Único
de impossível encaixe
nesse puzzle de carnes
em que se elabora a espécie
que um dia para allá será
Inexorável destino, insipiência, irrelevância
E ele observa a abóbada celeste azulmarinha, sempre escura
mesmo à toda luz da lua, cada vez mais escura
sempre a mesma paisagem, as estrelas
se repetem em seu pisca-pisca
vaga-lumes presos na grande vidraça de Deus
E já que os céus sempre se repetem
Olhar para o baixo chão é talvez a saída para não se morrer de tédio,
- ele caminha e pensa, sem crer
em absolutamente nada do que seu pensamento, até porque
de tudo resulta um novo devir
As imperceptíveis mudanças quantitativas levam às grandes mudanças
qualitativas
Que só se observam em lentes voltadas para trás
Mas é o Absoluto das coisas inatingíveis
das coisas inesgotáveis
das coisas impróprias aos humanos
das coisas que pertencem aos deuses
Enfim, é o Absoluto o Único o que importa
Por tudo isso a vida se torna um fardo, leve ou pesado
sempre qualidade de fardo, embora
haja prazer no fardo, vez em quando
ao se comparar os pesos
e os laços
Por isso o revólver sempre apontado
Por isso o vinho derramado
As cinzas de cigarro, e o choro mofado ao fundo
Por isso que as caras nos espelhos nem se sabem mais:
Desde que enterrou o último dos Absolutos e agora
Guarda rancor de si mesmo, mas
Segue determinado
O mandamento number one do diabo:
Odiarás o teu próximo como a ti mesmo
Mas isto ainda não é o revólver, isto ainda é o vinho
e o cigarro, sangue e espinho
O sol lambia as areias e os corpos e as espumas das ondas
E o verde das águas mais para allá, e o azul do céu mais para allá
E as ilhas ao longe, e a linha reta e curva do horizonte
E tudo é mesmo sempre mais para allá
Que importa? Igual se passa com ele, não é ele
também mais, muito mais, para allá?
De si mesmo, de todos, tudo quanto
esbarre casual, ou que a vontade súbita
queira agarrar
Como agora, que as palavras
e as curvas, e os cabelos ao vento
E lhe parece às vezes estranho, tão estranho
que ela lhe queira, que ela lhe queira para qualquer algo
e é ainda mais estranho que ela lhe queira para a carne
Pois toda a vontade se devia encerrar no Único, e ela
devia apenas deixar-se para a vontade
do Único, o Absoluto
razão de ser de todas as vontades, derivadas
d'A Grande Vontade Absoluta
E isto tudo se passa na calçada da praia quando passa um jornal
que passa gritando:
O Absoluto Morreu! O Absoluto Morreu!
E ele, nem sorriu
nem sofreu
Ele olha a parte do copo que lhe faltava e nem tinha bebido ainda a metade
quando ela lhe pede um trago
E reclama que amargo
Seu doce, o hidromel dos deuses do olimpo
Mas tudo isso morreu
E ele, nem sorriu
nem sofreu
Uma trêmula bandeira ao canto esquerdo da televisão
feita de azul, feita de estrelas e o resto
tudo listras vermelhas, e ele até gosta
não pode mentir que não aprecia as louras madeixas de rapunzel
ou as róseas bochechas de uma branca de neve
e tudo o mais faz a fantasia e o sonho
palpável, possível, róseos lábios
a cobrir de beijos, doces beijos
e drops, e amendoim, e chocolate e bala de menta e mel
palpáveis, possíveis, rubros lábios
a cobrir de línguas, doces lábios
a lamber o sal, a beber o ser
acridoce, animal
Mas tudo isso ainda não é o revólver:
isso tudo ainda é o sudário
No qual se enrola o corpo pós-crucificado
Na verdade não era assim que ele a queria que fosse, nem ela
assim o esperara o dia de vê-lo coçando a memória
a manter na reserva um resto de mistério para o dia
do que lhe parecia ser o dia
da invasão da normandia
E ela lhe poria em volta o pescoço colares de flores havaianas
ela o beijaria uma virgem dos lábios de mel
ela só queria que fosse tal no sonho
tal o sonho acordado às oito em punto
no mesmo canal
Para ele talvez fosse a Marselhaise, ou o momento fatal do gol
ou o primeiro aumento de salário que um dia
lhe fez acreditar que a vida
era ao alcance das mãos
Para ela talvez mais ainda que o beijo da novela; mais
que novela não é vida, ela o sabia
talvez pudesse se comparar ao primeiro gozo
com as próprias mãos
Para ele seria assim como a conquista da antártida, ou
o dia em que acertaria na loteria de bichos
(não pensava no milhar)
já na dezena, bastava
a se sentir um ganhador
Para ela seria um pouco de tudo
acrescido à surpresa
da primeira vez
Para ele seria de tudo um pouco
acrescido à surpresa
da primeira vez
Mas nem para ela, nem para ele
nada nem de longe lembrava
a primeira vez
Mas nem se pense que isso já era o revólver, que não era
Eram só as mãos
Um tanto cálidas
Havia também o réquiem mozartiano, e um certo canto gregoriano
de que não se lembrava o nome
Havia uma correspondência recebida junto com um telegrama
sem que fosse um encontro de contas
Havia a exigência de regularizar certa burocracia estatal
em oito repartições
Havia, enfim, uma porção de ditas pequenas coisas que
assassinam os dias
Sobretudo, havia
A necessidade de escapar do asco
Mas também não se pode dizer que nisto esteja o revólver
Afinal, todos temos nossos dias
semanas
meses
anos
                                                                   décadas
De aflição
angústia
desespero
Temperado a prazer
até que
Nesse dia limpou cuidadosamente a cinza e catou
as pontas de cigarros espalhadas e pôs a lavar
a toalha
e levantou a garrafa, e a lançou ao cesto
E mergulhou a cabeça debaixo a torneira de água fria
E descobriu no espelho a cara das caras que importava
A encenar o drama
do seu último ato
No papel de judas
da própria alma
Para que tudo fosse a contento
Limpou cuidadosamente a arma com óleo e tudo
E completou de balas, novas
para que nada lhe falhasse
Assim como quem sabe do momento fatal
todo valor e brilho
E por falar em brilho, abriu outra garrafa do vinho
e vestido em camisa e calça e paletó de linho, e meia de seda
e gravata de seda
E chegou à janela, na mão a taça vermelha e seca
Contemplou lá fora
E não havia nada
Senão que o Absoluto
O mesmo cenário azulmarinho
As mesmas estrelas
O mesmo céu chiaroescuro
Finalmente abriu as asas de universo dadas por Deus
E voou
O revólver ainda nem era o verso